sexta-feira, 29 de abril de 2011

Anarquismos: concepções

Anarquismos: concepções

Anarquismo é uma teoria política que pretende criar anarquia, "a ausência do senhor, do soberano". Em outras palavras, anarquismo é uma teoria política que almeja criar uma sociedade na qual os indivíduos cooperem livremente entre si como iguais. Assim, o anarquismo se opõe a todas as formas de controle hierárquico - venha ele do Estado ou de capitalistas - por ser danoso tanto ao individuo quanto à sua individualidade e, portanto desnecessário (P-J Proudhon, What is Property, p. 264).
Embora a compreensão popular de anarquismo seja de um movimento violento antiestado, o anarquismo é uma tradição muito mais sutil e delicada do que a simples oposição ao poder governamental. Os anarquistas se opõem à idéia de que o poder e a dominação são necessários para a sociedade, e por isso defendem formas mais cooperativas e anti-hierárquicas de organização econômica, política e social (The Politics of Individualism, p. 106. L. Susan Brown).
O desejo comum a todos os anarquistas é uma sociedade livre de todas as instituições sociais coercitivas e políticas que impedem o desenvolvimento de uma humanidade livre (Rudolf Rocker, Anarcho-Syndicalism, p. 16).
Anarquismo é uma teoria política e sócio-econômica, não uma ideologia. A diferença é muito importante. Basicamente, teoria significa que você possui idéias; ideologia significa que idéias possuem você. Anarquismo é um corpo de idéias, mas elas são flexíveis, em um constante estado de evolução e movimento, e abertas para serem modificadas à luz de novas informações. Da mesma forma que a sociedade se altera e se desenvolve, assim também é o anarquismo. Uma ideologia, em contraste, é um conjunto de idéias "fixas" que as pessoas abraçam dogmaticamente, usualmente ignoram a realidade ou apenas efetuam "mudanças" que se adaptem à ideologia, que é (por definição) correta. Todas essas idéias "fixas" se constituem em uma fonte de tirania e contradição, que conduzem a tentativas de fazer com que cada pessoa se adapte a uma camisa de força. E isto se aplica a todas as ideologias – Leninismo, Objetivismo, "Libertarianismo", e daí por diante – todas elas produzirão o mesmo efeito: a destruição da personalidade, do indivíduo, em nome de uma doutrina, uma doutrina usualmente a serviço de uma elite dominante. Ou, como Mikhail Bakunin descreveu: "Até agora toda a história humana tem se restringido a uma perpétua e sanguinária imolação de milhões de pobres seres humanos em homenagem a uma cruel abstração -- Deus, país, poder do estado, orgulho nacional, direitos históricos, direitos jurídicos, liberdade política, interesse público" (Mikhail Bakunin. Deus e o Estado).
Os dogmas são estáticos e mortais em sua rigidez, que muitas vezes são materializados na figura de algum "profeta" religioso ou secular morto, em torno do qual seus seguidores constroem suas idéias, representadas na figura de um ídolo, imutável como uma pedra. Os anarquistas querem vida para enterrar a morte, querem da vida tudo aquilo que a vida pode dar. A vida governando sobre a morte, não vice-versa. Ideologia é o sacrifício do pensamento crítico e conseqüentemente da liberdade. Ideologia é um providencial livro de regras e "respostas" que nos desobrigam do "ônus" de pensar por nós mesmos. Embora as palavras gregas anarchos e anarchia sejam tidas como significando "sem governo" ou "estando sem governo", anarquismo, pode ser interpretado, em seu significado estrito, original, simplesmente como "nenhum governo". "An-archy" significa "sem um governante", ou mais abrangente, "sem autoridade", e é nesse sentido que os anarquistas tem continuamente adotado a palavra. A palavra "anarquia" vem do grego, prefixo an (ou a), significando "não", "que não quer", "a ausência de", ou "a falta de", mais archos, significando "um governo", "diretor", "chefe", "pessoa em um cargo", ou "autoridade". Ou, como Peter Kropotkin colocou, Anarquia vem de palavras gregas significando "contrario à autoridade" (Kropotkin's Revolutionary Pamphlets, p. 284).
Somos, pois, anarquistas, porque queremos uma sociedade sem governo, uma organização livre, indo do indivíduo ao grupo, do grupo à federação e à confederação, com desprezo das barreiras e fronteiras, sendo a associação baseada sobre o livre acordo e naturalmente determinada e regulada pelas necessidades, aptidões, idéias e sentimentos dos indivíduos [Neno Vasco 1878 – 1923].
A Anarquia é um modo de vida coletivo, no qual todos os homens e mulheres vivem como irmãos e irmãs, sem oprimirem-se ou explorarem-se, e cada um pode obter os meios que a civilização neste estágio histórico é capaz de prover, de modo a conseguir o desenvolvimento moral e material de mais alto nível; e Anarquismo é um método de realizar a Anarquia, através da liberdade e sem nenhum governo, isto é, sem autoridades que imponham, mesmo que com boas intenções, seus próprios desejos sobre os outros pela força (MALATESTA, Errico. Jornal “Pensiero e Volontà”) (In: Revista VERVE 3 p. 169-170).

Referencia


terça-feira, 26 de abril de 2011

Wilhelm Reich - A função do orgasmo

A função do orgasmo (Wilhelm Reich)

«As enfermidades psíquicas são o resultado de uma perturbação da capacidade natural de amar» (REICH, 1990, p. 14).
«A estrutura do caráter do homem moderno, que reflete uma cultura patriarcal e autoritária de seis mil anos, é tipificada por um encouraçamento do caráter contra sua própria natureza interior e contra a miséria social que o rodeia. Essa couraça do caráter é a base do isolamento, da indigência, do desejo de autoridade, do medo à responsabilidade, do anseio místico, da miséria sexual e da revolta neuroticamente impotente, assim como de um condescendência patológica. O homem alienou-se a si mesmo da vida, crescendo hostil a ela. Essa alienação não é de origem biológica, mas sócio-econômica. Não se encontra nos estágios da história humana anteriores ao desenvolvimento do patriarcado» (REICH, 1990, p. 14-15).
«Uma sujeição sem remédio às condições sócias caóticas continuará a caracterizar a existência humana. Prevalecerá a destruição da vida pela educação coerciva e pela guerra» (REICH, 1990, p. 15).
«Sexualidade e angústia são funções do organismo vivo que operam em direções opostas: expansão agradável e contração angustiante» (REICH, 1990, p. 15).
«A causa imediata de muitos males assoladores pode ser determinada pelo fato de que o homem é a única espécie que não satisfaz à lei natural da sexualidade» (REICH, 1990, p. 16).
«A distorção social da sexualidade natural e sua supressão nas crianças e nos adolescentes são condições humanas universais, transcendendo todas as fronteiras de Estado ou grupo» (REICH, 1990, p. 17).
«É uma tendência humana universal, causada pela supressão da vida; a educação autoritária constitui a base psicológica das massas populares de todas as nações para a aceitação e o estabelecimento da ditadura. Seus elementos básicos são a mistificação do processo vital, um concreto desamparo de caráter material e social, o medo de assumir a responsabilidade de orientar a própria vida, isso é, o desejo mais ou menos forte de uma segurança ilusória e de autoridade ativa ou passiva» (REICH, 1990, p. 18).
«Conhecimento, trabalho e amor natural são as fontes de nossa vida. Deveriam também governá-la; e a responsabilidade total deveria ser assumida pelos homens e mulheres que trabalham, em toda parte» (REICH, 1990, p. 19).
«Significa que o caráter político irracional da vontade do povo deve ser substituído pelo domínio racional do processo social. Isso exige a progressiva auto-educação do povo em direção à liberdade responsável, em vez da suposição infantil de que a liberdade pode ser recebida como um presente, ou pode ser garantida por alguém. Se a democracia quer erradicar a tendência à ditadura nas massas populares, deverá provar que é capaz de eliminar a pobreza e de conseguir a independência racional do povo. Isso, e só isso, pode chamar-se desenvolvimento social orgânico» (REICH, 1990, p. 21).
«Mesmo nas democracias, o povo era ensinado, como ainda o é, a ser cegamente fiel. As catástrofes dos tempos mostraram-nos que o povo ensinado a ser cegamente fiel em qualquer sistema se privará da própria liberdade; matará o que lhe dá a liberdade e fugirá com o ditador» (REICH, 1990, p.21).
«O médico, ou o professor, tem uma única responsabilidade, isso é, praticar inflexível-mente a sua profissão, sem levar em conta os poderes que suprimem a vida, e ter em mente apenas o bem-estar dos que lhe são confiados. Ele não pode representar quaisquer ideologias que contradigam a ciência médica, ou pedagógica» (REICH, 1990, p. 22).
«O homem é um ser desamparado quando lhe falta o conhecimento; o desamparo causado pela ignorância é o fertilizante da ditadura» (REICH, 1990, p. 22).
«A ‹moralidade› é ditatorial quando confunde com pornografia os sentimentos naturais da vida» (REICH, 11990, p. 22).
«O comportamento moral natural pressupõe o livre desenvolvimento do processo natural da vida. Por outro lado, caminham de mãos dadas a moralidade compulsiva e a sexualidade patológica» (REICH, 1990, p. 23).
«Na verdade ele (o homem prático) está se tornando cada vez mais impotente, mas tem um ‹espírito crítico›, estéril, embora; tem ideologias ou tem a autoconfiança fascista. É um escravo, um ninguém, mas a sua raça é uma ‹raça pura› ou nórdica; ele sabe que o ‹espírito› governa o corpo e que os generais defendem a ‹honra›» (REICH, 1990, p. 45).
«É seu próprio corpo que o paciente esquizofrênico sente como seu perseguidor» (REICH, 1990, p. 47).
«Não é apenas o desejo sexual proibido que é inconsciente, mas também as forças defensivas do ego» (REICH, 1990, p. 57).
«Uma experiência psíquica pode provocar uma resposta somática que produz uma mudança permanente em um órgão. [...] chamei a esse fenômeno ancoragem fisiológica de uma experiência psíquica» (REICH, 1990, p. 61).
«As pessoas são ‹polimorficamente perversas› e também o são sua moralidade e suas instituições» (REICH, 1990, p. 65-66).
«Se por causa de um casamento insatisfatório, uma mulher jovem e ardente desenvolvia uma neurose estásica, por exemplo, uma angústia cardíaca nervosa, não ocorreria a ninguém indagar a respeito da inibição que a impedia de experimentar a satisfação sexual a despeito de seu casamento. Com o tempo é mesmo possível que ela pudesse desenvolver uma histeria real ou uma neurose compulsiva. Nesse caso, a causa primeira teria sido a inibição moral, enquanto a sexualidade insatisfeita seria a força motriz» (REICH, 1990, p. 86).
«É simples e parece até vulgar, mas eu sustento que toda pessoa que tenha conseguido conservar alguma naturalidade sabe disto: os que são psiquicamente enfermos precisam de uma só coisa — completa e repetida satisfação genital» (REICH, 1990, p. 87).
«O homem é a única espécie biológica que destruiu sua própria função sexual natural e está doente em consequência disso» (REICH, 1990, p.92).
«Potência orgástica é capacidade de abandonar-se, livre de quaisquer inibições, ao fluxo de energia biológica; a capacidade de descarregar completamente a excitação sexual reprimida, por meio de involuntárias e agradáveis convulsões do corpo» (REICH, 1990, p. 92).
«A experiência clínica mostra que, como resultado da repressão sexual universal, homens e mulheres perdem a capacidade de experimentar a entrega involuntária. É precisamente essa faze antes desconhecida de excitação final e de solução da tensão que tenho em mente quando falo de ‹potência orgástica›. Ela constitui a função biológica básica e primária que o homem tem em comum com todos os outros organismos vivos. Toda experiência da natureza deriva dessa função, ou do desejo dela» (REICH, 1990, p. 97).
«A perturbação da genitalidade não é, como se pensava, um sintoma entre outros. É o sintoma da neurose. Pouco a pouco, todas as evidências levaram a uma conclusão: a enfermidade psíquica não é só o resultado de uma perturbação sexual no sentido freudiano lato da palavra; mais concretamente, é o resultado da perturbação da função genital, no sentido estrito da impotência orgástica» (REICH, 1990, p. 99-100).
«A fonte de energia da neurose tem origem na diferença entre acúmulo e a descarga de energia sexual» (REICH, 1990, p. 100).
«Sem qualquer pressentimento do fato, nós nos havíamos aproximado da principal característica do homem moderno, que é a tendência de repelir os impulsos sexuais autênticos e agressivos com atitudes espúrias, falsas e enganosas. A adaptação da técnica á hipocrisia do caráter do paciente apresentava conseqüências que ninguém adivinhava, e que todos inconscientemente temiam» (REICH, 1990, p. 108).
«Agressão, no sentido estrito da palavra, não tem nada a ver com sadismo ou destruição. A palavra significa ‹aproximação›. Toda manifestação positiva da vida é agressiva. [...] Agressão é a expressão de vida da musculatura e do sistema de movimento» (REICH, 1990, p. 137).
«Não há conversão de uma excitação sexual. A mesma excitação que aparece nos genitais como sensação de prazer é percebida como angústia quando se apodera do sistema cardíaco, i. e., é percebida como o oposto exato do prazer» (REICH, 1990, p. 119).
«A sobrecarga do sistema vasovegetativo com a excitação sexual não descarregada é o mecanismo central da angústia» (REICH, 1990, p.119).
«[...] A incapacidade de experimentar satisfação é que caracteriza a neurose» (REICH, 1990, p. 135).
«O mundo total da experiência passada incorpora-se ao presente sob a forma de atitudes de caráter. O caráter de uma pessoa é a soma total funcional de todas as experiências passadas» (REICH, 1990, p. 128).
«A tendência destrutiva cravada no caráter não é senão a cólera que o indivíduo sente por causa de sua frustração na vida e de sua falta de satisfação sexual» (REICH, 1990, p. 131).
«Couraça do caráter: um conflito combatido em determinada idade, sempre deixa atrás de si um vestígio no caráter do indivíduo. Esse vestígio se revela como um enrijecimento do caráter. Funciona automaticamente e é difícil de eliminar. O paciente não o sente como algo alheio; freqüentemente, porém, percebe-o como uma rigidez ou como uma perda da espontaneidade. Cada um desses estratos da estrutura do caráter é uma parte da história da vida do indivíduo, conservada e, de outra forma ativa no presente. A experiência mostrou que os conflitos antigos podem ser bem facilmente reativados pela liberação desses estratos. Se os estratos de conflitos enrijecidos eram especialmente numerosos e funcionavam automaticamente, se forma uma unidade compacta e não facilmente penetrável, o paciente os sentia como uma ‹couraça› rodeando o organismo vivo. [...] Sua função em todos os casos era proteger o indivíduo contra experiências desagradáveis. Entretanto, acarretava também uma redução da capacidade do organismo para o prazer (REICH, 1990, p. 129-130).
«Agressão, no sentido estrito da palavra, não tem nada a ver com sadismo ou destruição. A palavra significa ‹aproximação›. Toda manifestação positiva da vida é agressiva. [...] Agressão é a expressão de vida da musculatura e do sistema de movimento» (REICH, 1990, p. 137).
«Se uma pessoa encontra obstáculos intransponíveis nos seus esforços para experimentar o amor ou a satisfação das exigências sexuais, começa a odiar. Mas o ódio não pode ser expresso. Deve ser refreado para evitar a angústia que causa. Em suma, o amor contrariado causa angústia. Igualmente, a agressão inibida causa angústia; e a angústia inibe as exigências do ódio e do amor» (REICH, 1990, p. 131).
«A pessoa orgasticamente insatisfeita desenvolve um caráter artificial e um medo às reações espontâneas da vida; e assim, também, um medo de perceber suas próprias sensações vegetativas» (REICH, 1990, p. 132).
«A estase sexual é o resultado de uma perturbação da função do orgasmo. Fundamentalmente, as neuroses podem ser curadas pela eliminação de sua fonte de energia, a estase sexual» (REICH, 1990, p. 136).
«Toda ação destrutiva aparentemente arbitrária é uma reação do organismo à frustração da satisfação de uma necessidade vital, especialmente de uma necessidade sexual» (REICH, 1990, p.138).
«A expressão nunca mente. [...] A expressão é a manifestação imediata do caráter» (REICH, 1990, p. 150).
«O casamento e a família compulsivos reproduzem a estrutura humana de uma era econômica e psiquicamente mecanizada» (REICH, 1990, p.).
«Ninguém negaria o valor da capacidade de amar, nem o valor da potência sexual. Ninguém ousaria postular a incapacidade para o amor, ou a impotência — que são os resultados da educação autoritária — como objetivo do empenho humano» (REICH, 1990, p. 161).
«A sociedade molda o caráter humano. Por sua vez, o caráter humano reproduz, em massa, a ideologia social. Assim, reproduzindo a negação da vida inerente à ideologia social, as pessoas causam sua própria supressão. Esse é o mecanismo básico da chamada tradição» (REICH, 1990, p. 163).
«Os pais reprimem a sexualidade das crianças pequenas e dos adolescentes, sem saber que o fazem obedecendo às injunções de uma sociedade mecanizada e autoritária. Com sua expressão natural bloqueada pelo ascetismo forçado, e em parte pela falta de uma atividade fecunda, as crianças desenvolvam pelos pais uma fixação pegajosa, marcada pelo desamparo e por sentimentos de culpa. Isso, por sua vez, impede que se libertem da situação de infância, com todas as suas inibições e angústias sexuais concomitantes. As crianças educadas assim tornam-se adultos com neuroses de caráter, e depois transmitem suas neuroses a seus próprios filhos. Assim de geração em geração. Dessa forma é que se perpetua a tradição conservadora que teme a vida. Como, apesar disso, podem as pessoas se tornar — e permanecer — sãs?» (REICH, 1990, p. 172).
«Pus o preto no branco ao afirmar que a educação convencional torna as pessoas incapazes para o prazer — encouraçando-as com o desprazer. O prazer e a alegria da vida são inconcebíveis sem luta, sem experiências dolorosas e desagradáveis auto-avaliações. A saúde psíquica se caracteriza são pela teoria do nirvana dos iogues e budistas, nem pelo hedonismo dos epicuristas ou pela renúncia do monasticismo; caracteriza-se pela alternância entre a luta desagradável e a felicidade, entre o erro e a verdade, entre a derivação e a volta ao rumo, entre o ódio racional e o amor racional; em suma, pelo fato de se estar plenamente vivo em todas as situações da vida» (REICH, 1990, p. 175).
«A higiene mental pressupõe uma vida ordenada, materialmente garantida. Uma pessoa atormentada pelas necessidades materiais básicas não pode gozar nenhum prazer, e facilmente se transforma em um psicopata sexual» (REICH, 1990, p. 177).
«Toda a produção da cultura, da história de amor às mais altas realizações da poesia, confirma minha opinião. Toda a política da cultura (filmes, romances, poesia, etc) gira em torno do elemento sexual e medra sobre sua renúncia na realidade e sua afirmação no ideal. As industrias e a propaganda capitalizam-no. Se toda a humanidade sonha com a felicidade sexual e poetiza o tema, não deveria também ser possível transformar o sonho em realidade? O objetivo era claro. Os fatos descobertos na profundidade biológica exigiam atenção médica. Por que, apesar disso, o anseio de felicidade sempre aparece apenas como uma visão fantástica, em luta com a dura realidade?» (REICH, 1990, p. 183-184).
«As leis patriarcais pertencentes à religião, à cultura e ao casamento são predominantemente leis contra a sexualidade» (REICH, 1990, p. 192).
«O que acontece com os instintos que são libertados da repressão? Segundo a psicanálise, são censurados e sublimados. Não havia qualquer menção — e nem podia haver — da satisfação real, porque o inconsciente era concebido apenas como o inferno, ou como um feixe de impulsos anti-sociais e perversos» (REICH, 1990, p. 186).
«Toda educação sofre com o fato de que a adaptação social requer a repressão da sexualidade natural, e de que essa repressão torna as pessoas doentes e anti-sociais» (REICH, 1990, p. 187).
«O anseio do homem pela vida e pelo prazer não pode ser aniquilado, enquanto o caos social da sexualidade pode ser eliminado» (REICH, 1990, p. 189).
«A supressão da sexualidade das crianças e dos adolescentes tinha a função de tornar mais fácil para os pais insistir na obediência cega dos filhos» (REICH, 1990, p. 193).
«A supressão sexual tem a função de tornar o homem dócil à autoridade exatamente como a castração dos garanhões e dos touros tem a função de produzir satisfeitos animais de carga» (REICH, 1990, p. 193).
«A supressão sexual torna-se um instrumento essencial de escravização econômica» (REICH, 1990, p. 200).
«Assim, a formação de uma estrutura de caráter sexual negativa era o objetivo real e inconsciente da educação» (REICH, 1990, p. 194).
«Apenas a liberação da capacidade natural do homem para o amor é que pode vencer a tendência sádica e destrutiva» (REICH, 1990, p. 195).
«Crianças saudáveis são sexualmente ativas de maneira natural e espontânea. Crianças doentes são sexualmente ativas de maneira inatural, i, e., perversa. Por isso, na nossa educação sexual, enfrentamos não a alternativa de atividade sexual ou ascetismo mas a alternativa de sexualidade natural e sã ou sexualidade perversa e neurótica» (REICH, 1990, p. 200).
«A era autoritária e patriarcal da história humana tentou manter sob controle os impulsos anti-sociais por meio de proibições morais compulsivas. Foi dessa maneira que o homem civilizado, se na verdade pode ser chamado assim, desenvolveu uma estrutura psíquica que consiste em três estratos. Na superfície, usa a máscara artificial do autocontrole, da insincera polidez compulsiva e da pseudo-sociabilidade. Essa máscara esconde o segundo estrato, o ‹inconsciente›, freudiano, no qual sadismo, avareza, sensualidade, inveja, perversões de toda sorte, etc., são mantidos sob controle, não sendo, entretanto privados da mais leve quantidade de energia. Esse segundo estrato é o produto artificial de uma cultura negadora do sexo e, em geral, é sentido conscientemente como um enorme vazio interior e como desolação. Por baixo disso, na profundidade, existem e agem a sociabilidade e a sexualidade naturais, a alegria espontânea no trabalho e a capacidade para o amor. Esse terceiro e mais profundo estrato, que representa cerne biológico da estrutura humana, é inconsciente e temido. Está em desacordo como todos os aspectos da educação e do controle autoritários. Ao mesmo tempo, é a única esperança real que o homem tem de dominar um dia a miséria social» (REICH, 1990, p. 201).
«O fato de que milhões de pessoas foram sempre ensinadas a reconhecer uma autoridade política tradicional, em vez de uma autoridade baseada no conhecimento dos fatos, constituiu a base sobre a qual a exigência fascista de obediência pode agir» (REICH, 1990, p. 204-204).
«Desde os tempos antigos, a ‹preservação da família› fora, na Europa, um abstrato chavão, por trás do qual se escondiam os pensamentos e ações mais reacionários. Alguém que criticasse a família autoritária compulsiva, e a distinguisse do relacionamento natural de amor entre filhos e os pais, era ‹inimigo da pátria›, um ‹destruidor da sagrada instituição da família›, um anarquista» (REICH, 1990, p. 209).
«Como o medo da excitação orgástica se encontra em toda neurose, as fantasias e atitudes masoquistas fazem parte de toda enfermidade emocional» (REICH, 1990, p. 219).
«O masoquismo não corresponde a um instinto biológico. É o resultado de uma perturbação na capacidade de satisfação de uma pessoa, e uma tentativa continuadamente frustrada de corrigir essa perturbação. O masoquismo é a expressão de uma tensão sexual que não pode ser aliviada. Sua fonte imediata é a angústia de prazer ou medo da descarga orgástica. O que o caracteriza é que procura conseguir precisamente aquilo que mais profundamente teme: a liberação agradável da tensão, experimentada e temida como um rompimento ou uma exploração » (REICH, 1990, p. 220).
«Sofrer e suportar o sofrimento são resultados da perda da capacidade orgástica para o prazer» (REICH, 1990, p. 220).
«A neurose não é mais que a soma total de todas as inibições cronicamente automáticas de excitação sexual natural» (REICH, 1990, p. 222).
«Em forma de ideologia e prática de várias religiões patriarcais, o masoquismo prolifera como erva má e sufoca todos os direitos naturais à vida. Mantém as pessoas no estado abissal de submissão. Impede suas tentativas de chegar a uma ação racional comum e os satura do medo de assumir a responsabilidade de sua existência. É causa do fracasso dos melhores impulsos de democratização da sociedade» (REICH, 1990, p. 223).
«A vida funciona, apenas. Não tem nenhum ‹significado›» (REICH, 1990, p. 226).
«A energia da vida sexual pode ser contida por tensões musculares crônicas. A cólera e a angustia podem também ser bloqueadas por tensões musculares» (REICH, 1990, p. 231).
«Nós não temos relações sexuais ‹a fim de gerar filhos›, mas porque uma congestão de fluido carrega bioeletricamente os órgãos genitais e pressiona em direção à descarga. Isso, por sua vez, é acompanhado pela descarga de substâncias sexuais. Assim, a sexualidade não está a serviço da procriação; mais propriamente, a procriação é um resultado incidental do processo tensão-carga nos genitais. Isso pode ser deprimente para os campeões da filosofia moral eugênica, mas é a pura verdade» (REICH, 1990, p. 241-242).
«Os afetos de uma experiência não são determinados pelo seu conteúdo, mas pela quantidade de energia vegetativa mobilizada pela experiência» (REICH, 1990, p. 268).
«Todos os estados somáticos que se conhecem clinicamente, como a hipertensão cardiovascular, se tornam compreensíveis como estados de atitudes crônicas simpaticotônicas de angustia. No centro dessa simpaticotonia está a angustia de orgasmo, isto é, o medo da expansão e da convulsão involuntária» (REICH, 1990, p. 253).
«Vista biologicamente, a inibição da respiração nos neuróticos tem a função de reduzir a produção de energia no organismo e, assim, a produção de angustia» (REICH, 1990, p. 263).
«No rompimento da unidade do sentimento do corpo pela supressão sexual, e no contínuo anseio de restabelecer contato consigo mesmo e com o mundo, encontra-se a raiz de todas as religiões negadoras do sexo. ‹Deus› é a idéia mistificada da harmonia vegetativa entre o eu e a natureza. Desse ângulo, a religião só pode ser reconciliada com a ciência natural se Deus personifica as leis naturais e o homem está incluído no processo natural» (REICH, 1990, p. 302).
«Certas expressões, habituais na educação pela boca de pais e mestres, retratam com exatidão o que aqui descrevi como técnica muscular de encouraçamento. Uma das peças centrais da educação atual é o aprendizado do autocontrole. ‹Quem quer ser homem deve dominar-se›. ‹Não se deve deixar-se levar›. ‹Não se deve demonstrar medo›. ‹Cólera é falta de educação›. ‹Uma criança decente senta-se quieta›. ‹Não se deve demonstrar o que se sente›. ‹Deve-se cerrar os dentes›. Essas frases, características da educação, inicialmente são repelidas pelas crianças, depois aceitas com relutância, laboradas e, por fim, exercitadas. Entortam-lhes — via de regra — a espinha da alma, quebram-lhes a vontade, destroem-lhes a vida interior, fazem delas bonecos bem educados.» (REICH, 1990, p. 304).
«Não adianta nada que os ‹caracteres rebeldes› oponham barreiras à educação. Precisamos mesmo   é:  1) do mais exato entendimento dos mecanismos pelos quais as emoções são patologicamente controladas; 2) da aquisição da mais larga experiência possível no trabalho prático com crianças, para descobrir qual a atitude que as próprias crianças assumem em relação a seus impulsos naturais dentro das condições existentes; 3) de descobrir as condições educacionais necessárias para estabelecer uma harmonia entre motilidade vegetativa e a sociabilidade; 4) a criação da fundação geral econômico-social para conseguirmos as condições anteriores» (REICH, 1990, p. 304).
«Mente e corpo constituem uma unidade funcional, tendo ao mesmo tempo uma relação antitética. Ambos funcionam segundo leis biológicas. A modificação dessas leis é resultado de influências sociais. A estrutura psicossomática é o resultado de um choque entre as funções sociais e biológicas. A função do orgasmo é a medida do funcionamento psicofísico, porque é nela que se expressa a função da energia biológica» (REICH, 1990, p. 320).
REFERENCIA
REICH, Wilhelm. A função do orgasmo. São Paulo: Círculo do Livro. 1990. 343p. Tradução: Maria da Glória Novak.

sábado, 23 de abril de 2011

Max Stirner: A minha causa é a causa de nada! (*)


A minha causa é a causa de nada! [*]

Johann Kaspar Schmidt (Max Stirner – 1806-1856)

Há tanta coisa a querer a ser a minha causa! A começar pela boa causa, depois a causa de Deus, a causa da humanidade, da verdade, da liberdade, do humanitarismo, da justiça; para além disso, a causa do meu povo, do meu príncipe, da minha pátria, e finalmente até a causa do espírito e milhares de outras. A única coisa que não está prevista é que a minha causa seja a causa de mim mesmo! “Que vergonha, a deste egoísmo que só pensa em si!”
Vejamos então como se comportam com a sua causa aqueles para cuja causa se espera que nós trabalhemos, nos sacrifiquemos e nos entusiasmemos.
Vós que sabeis dizer tanta coisa profunda sobre Deus e durante milênios haveis “sondado os enigmas da divindade” e lhes perscrutastes o âmago, vos sabereis decerto dizer-nos como é que o próprio Deus trata a “causa de Deus”, que nós estamos destinados a servir. E de fato vós não fazeis mistério nenhum do modo como o Senhor se comporta. Qual é então a sua causa? Terá ele, como de nós se espera, feito de uma causa estranha, da causa da verdade e do amor, a sua própria causa? A vós, este mal-entendido causa-vos indignação, e pretendeis ensinar-nos que a causa de Deus é sem dúvida a causa da verdade e do amor, mas que não se pode dizer que esta causa lhe seja estranha, já que Deus é, ele mesmo, a verdade e o amor; a vós, indigna-vos a suposição de que Deus possa, como nós, pobres vermes, apoiar uma causa estranha como se sua fosse. “Como poderia Deus assumir a causa da verdade se ele próprio não fosse a verdade?” Ele só se preocupa com sua causa, mas como é tudo em tudo em tudo, e a nossa é bem pequena e desprezível: é por isso que temos de “servir uma causa superior”. Do exposto fica claro que Deus só se preocupa com o que é seu, só se ocupa de si mesmo, só pensa em si e só se vê a si – e ai de tudo aquilo que não caia nas suas graças! Ele não serve nenhuma instância superior e só a si se satisfaz. A sua causa é uma causa... puramente egoísta.
E que se passa com a humanidade, cuja causa nos dizem que devemos assumir como nossa? Será a sua causa a de um outro, e serve a humanidade um causa superior? Não, a humanidade só olha para si própria, a humanidade só quer incentivar o progresso da humanidade, a humanidade tem em si mesma a sua causa. Para que ela se desenvolva, os povos e os indivíduos têm de sofrer por sua causa, e depois de terem realizado aquilo de que a humanidade precisa, ela, por gratidão, atira-os para a estrumeira da história. Não será a causa da humanidade uma causa... puramente egoísta?
Nem preciso de demonstrar a todos aqueles que nos querem impingir a sua causa que o que os move são apenas eles mesmos, e não nós, o seu bem-estar, e não o nosso. Olhem só para o resto do lote. Será que a verdade, a liberdade, o humanitarismo, a justiça desejam outra coisa que não seja o vosso entusiasmo para os servir?
Por isso todos se sentem nas suas sete quintas quando zelosamente lhes são prestadas honras. Veja-se o que se passa com o povo, protegido por dedicados patriotas. Os patriotas tombam em sangrentos combates, ou lutando contra a fome e a miséria. E acham que o povo quer saber disso? O povo “floresce” com o estrume dos seus cadáveres! Os indivíduos morreram “pela grande causa do povo”, o povo despede-se deles com umas palavras de agradecimentos e... tira daí proveito. É o que se chama um egoísmo rentável.
Mas vejam só aquele sultão que tão delicadamente se ocupa dos “seus”. Não será isto o altruísmo em estado puro, não se sacrifica ele hora a hora  pelos seus? Exatamente, pelos “seus”. Tenta tu mostrar-te uma vez, não como seu, mas como teu, e vais parar às masmorras por teres fugido ao seu egoísmo. A causa do sultão não é outra senão ele próprio: ele é para si tudo em tudo, é único, e não tolera ninguém que ouse não ser um dos “seus”.
E todos estes brilhantes exemplos não chegam para vos convencer de que o egoísta leva sempre a melhor? Por mim, extraio daqui uma lição: em vez de continuar a servir com altruísmo aqueles grandes egoístas, sou eu próprio o egoísta.
Nada é causa de Deus e da humanidade, nada a não ser eles próprios. Do mesmo modo, Eu sou a minha causa, eu que, como Deus, sou o nada de tudo o resto, eu que sou o meu tudo, eu que sou o único.
Se Deus e a humanidade, como vos assegurais, têm em si mesmos substância suficiente para serem, em si, tudo em tudo, então em sinto que a mim me faltará muito menos, e que não terei de me lamentar pela minha “vacuidade”. O nada que eu sou não o é no sentido da vacuidade, mas antes o nada criador, o nada a partir do qual eu próprio, como criador, tudo crio.
Por isso: nada de causas que não sejam única e exclusivamente a minha causa! Vocês dirão que a minha causa deveria, então, ao menos ser a “boa causa”. Qual bom, qual mau! Eu próprio sou a minha causa, e eu não sou nem bom nem mau. Nem uma nem outra coisa fazem para mim qualquer sentido.
O divino é a causa de Deus, o humano a causa “do homem”. A minha causa não é nem o divino nem o humano, não é o verdadeiro, o bom, o justo, o livre, etc., mas exclusivamente o que é meu. E esta não é uma causa universal, mas sim... única, tal como eu. Para mim, nada está acima de mim! (STIRNER, 2004,  p. 9-10-11)
[*] “Ich hab’ mein Sach’ auf nichts gestellt”, literalmente “Fundei a minha  causa sobre o nada”, é a primeira linha do poema de Goethe intitulado Vanitas! Vanitatum vanitas!, de 1806.

STIRNER, Max. O único e a sua propriedade. Lisboa: Portugal. Antígona, 2004, 339p.
Título original: Der einzige und sein eigentum.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

A escola moderna: Francisco Ferrer y Guardia

Francisco Ferrer (1859-1909) nasceu em Barcelona, numa família de camponeses católicos. A educação religiosa e autoritária que ele sofreu na escola de sua aldeia gera em seu coração uma revolta que permanecerá sempre vivaz: "Eu só tinha" diria posteriormente, "de fazer o contrário do que vivi". Ë sucessivamente fazendeiro, empregado numa fábrica de tecidos em Barcelona – onde é tocado pelas idéias anarquistas disseminadas entre o proletariado da cidade catalã – e ferroviário; milita no movimento republicano e anticlerical. Tendo participado de uma manifestação contra a monarquia em 1886, é obrigado a expatriar-se e se junta em Paris aos meios anarquistas. É ali que se afirma sua vocação pedagógica ao dar aulas particulares de espanhol para sustentar sua família. Publica inclusive um tratado de espanhol prático. Milita igualmente no movimento maçônico. Viaja pela Itália, Suíça e Bélgica interessando-se por todas as experiências de inovação pedagógica. Munido dessa bagagem e à frente de uma herança considerável deixada por uma admiradora, retorna à Espanha em 1901, e decide fundar a "Escola Moderna" com a qual sonha. Para isso, deve vencer muitas prevenções e resistências; mas sua tenacidade supera todos os obstáculos. O sucesso ultrapassa todas as expectativas: em 1908 há dez "escolas modernas" em Barcelona, quase cento e cinqüenta na Catalunha, estabelecimentos em Madri, Sevilha, Granada, Cádis... Sua irradiação ultrapassa as fronteiras da Espanha e escolas Ferrer são fundadas em Portugal, no Brasil, Suíça e Holanda. A escola moderna é mista e aberta a todos os meios (conquanto paga, o preço da pensão varia em função da renda dos pais); ela é laica e bane todo ensino religioso. Enfim, é também racional e científica. Dotada de uma biblioteca, de uma tipografia, de um serviço de edição que publica manuais e obras pedagógicas, ela aparece como um foco intenso de cultura popular. Ferrer quer que ela seja um instrumento de emancipação e propagação das idéias libertárias diante do "adestramento" do ensino oficial de educação, "poderoso meio de subjugação nas mãos dos dirigentes", que habitua as crianças "a obedecer, a crer, a pensar segundo seus dogmas sociais que nos regem". Para ele, o ensino deve ser uma força a serviço da mudança: "queremos homens capazes de evoluir incessantemente, capazes de destruir, renovar constantemente os meios e renovar-se a si mesmos". Assim, o principio fundamental da Escola Moderna é a liberdade da criança; ela esforça-se para respeitar seu movimento natural, sua espontaneidade, as características de sua personalidade; quer desenvolver sua independência, seu juízo, seu espírito critico; "prefiro", diz Ferrer, "a espontaneidade livre de uma criança que não sabe nada, à instrução de palavras e à deformação intelectual de uma criança que sofreu a educação atual". Inspirando-se na educação integral de Robin, dá um amplo espaço às atividades físicas e manuais. Sua pedagogia não apela nem para a coação, nem para a competição: "na escola moderna não há recompensa nem castigo (...) também não há exames para inflar algumas crianças com o título lisonjeiro de "excelentes", distribuir a outros o título vulgar de "bons" e rejeitar o resto na consciência desafortunada da incapacidade e do fracasso. Ao lado da experiência pedagógica da escola moderna, Ferrer esforça-se para dar uma vasta difusão às idéias que o animam e para coordenar os esforços conduzidos em diferentes países. Foi assim que em 1908 foi criada uma revista internacional L'École Rénovée, na qual são discutidas "todas as idéias e todas as tentativas que concernem à renovação da escola" e onde se encontra, além da assinatura de Ferrer, a de Kropotkin, Robin, Domela Nieuwenhuis, Ellen Key, Willian Heaford e a maioria dos pedagogos libertários da época. Ao mesmo tempo, ele quer dar uma audiência internacional à liga da educação libertária de Robin e suscita a organização de uma liga para a educação racional da infância cujos objetivos são: dar ao ensino uma base científica e racional, defender a idéia de uma educação completa e harmoniosa, englobando "a formação da inteligência, o desenvolvimento do caráter, a cultura da vontade, a preparação de um ser moral e físico bem equilibrado" e assentar a pedagogia sobre um conhecimento da psicologia da criança. Como a de Robin, a obra de Ferrer chocou-se contra vivas resistências e sofreu ataques violentos. Ele próprio foi preso pela primeira vez em 1906, mas absolvido. Em 1909, momento de grande efervescência na Catalunha é novamente detido, julgado a portas fechadas por um conselho de guerra, condenado à morte e executado; seu ultimo grito é: "viva a escola moderna". Sua morte provoca uma profunda emoção pelo mundo, em todos os meios da pedagogia libertária, na medida da influência que ele tinha exercido. Referencia - SAFON, Ramón. O racionalismo combatente de Francisco Ferre Y Guardia. São Paulo: Imaginário, 2003.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Emma Goldman - O fracasso da revolução russa

 O fracasso da revolução russa

Emma Goldman


Ficam agora bem claros os motivos que fizeram com que a Revolução Russa, tal como foi conduzida pelo Partido Comunista, fosse um fracasso. O poder político do partido, organizado e centralizado no Estado, procurou manter-se utilizando todos os meios de que dispunha. As autoridades centrais tentaram fazer com que o povo agisse de acordo com modelos que correspondiam aos propósitos do Partido, cujo único objetivo era fortalecer o Estado e monopolizar todas as atividades econômicas, políticas e sociais e até mesmo as manifestações culturais. A revolução tinha objetivos totalmente diferentes pelas suas próprias características, era a negação do princípio da Autoridade e da centralização. Ela lutava para alargar ainda mais os meios de expressão do proletariado e multiplicar as fases do esforço individual e coletivo. Os objetivos e as tendências da Revolução eram diametralmente opostos àqueles do Partido Governante.

Igualmente opostos eram os métodos da Revolução e do Estado. Os da primeira eram inspirados pelo espírito da Revolução, ou seja, libertar-se de todas as forças de opressão e todos os limites - eram, em resumo, princípios de livre-arbítrio. Os métodos do Estado, pelo contrário - tanto do Estado Bolchevique quanto de todo o Governo ? baseavam-se na coação, que com o decorrer do tempo transformou-se, necessariamente, em violência sistemática, tirania e terrorismo. Desse modo, duas tendências opostas lutavam pela supremacia: o Estado Bolchevique contra a Revolução. Essa era uma luta de vida e morte: as duas tendências, contraditórias tanto nos seus objetivos quanto nos métodos que utilizavam, não conseguiam agir harmoniosamente: o triunfo do Estado significava a derrota da Revolução.

Seria um erro presumir que o fracasso da Revolução deveu-se inteiramente ao caráter dos bolcheviques. Basicamente, esse fracasso foi uma conseqüência dos princípios e métodos do bolchevismo. Eram os princípios e o espírito autoritários do Estado sufocando as aspirações libertárias e liberalizantes. Fosse qual fosse o partido que estivesse no controle do governo da Rússia, os resultados teriam sido essencialmente os mesmos.
Não foram tanto os bolcheviques que acabaram com a Revolução Russa quanto a idéia Bolchevique. Era uma idéia marxista, embora modificada. Era, em resumo, um governismo fanático. A Revolução Russa é um reflexo, em pequena escala, da luta de séculos entre o princípio do livre-arbítrio e o autoritarismo. Pois o que é o progresso senão uma aceitação mais ampla do princípio da liberdade contra aquele da coação? A Revolução Russa foi um passo em direção à liberdade, frustrado pelo Partido Bolchevique, pela vitória temporária de reacionários conceitos governistas...

O princípio do livre-arbítrio era forte nos primeiros dias da Revolução, a necessidade de expressar-se livremente absorvia tudo. Mas quando a primeira onda de entusiasmo recuou na maré baixa da vida cotidiana e prosaica, era preciso que houvesse uma convicção muito firme para que o fogo permanecesse aceso. Havia apenas um punhado de gente em toda a vastidão da Rússia capaz de manter aquela chama viva - os Anarquistas, uma minoria cujos esforços, totalmente suprimidos sob o governo do Czar, ainda não tinham tido tempo de dar frutos. O povo russo, até certo ponto anarquista por instinto, conhecia ainda muito pouco os verdadeiros princípios e métodos do livre-arbítrio para aplicá-los na vida diária. A maioria dos anarquistas russos ainda estava, infelizmente, enredada nas malhas de atividades de pequenos grupos e de tentativas individuais contra os esforços coletivos bem mais importantes e eficazes...

Mas o fracasso dos Anarquistas na Revolução Russa - no sentido a que acabamos de aludir - não prova a derrota do conceito de livre-arbítrio. Ao contrário, a Revolução Russa demonstrou, além de qualquer dúvida, que a idéia do Estado, de Estado Socialista em todas as suas manifestações (econômicas, políticas, sociais e educacionais) está inteira e completamente falida. Nunca antes, em toda a História, a Autoridade, o Governo e o Estado demonstraram ser tão inerentemente estáticos, reacionários e até mesmo contra-revolucionários em seus efeitos, em resumo: a própria antítese da Revolução.

Permanece uma verdade hoje, como ocorreu durante todo o processo, que somente o espírito e os métodos do livre-arbítrio podem fazer com que o homem dê mais um passo na sua eterna busca por uma vida melhor, mais bela e mais livre... Não obstante todas as doutrinas e partidos políticos, nenhuma revolução pode ser verdadeira e permanentemente bem sucedida se não rejeitar enfaticamente todas as formas de tirania e centralização e lutar com determinação para provocar uma verdadeira reavaliação de todos os valores econômicos, sociais e culturais. Não a simples substituição de um partido político por outro ao controle do Governo, não a autocracia mascarada por slogans proletários, não qualquer tipo de mudança no cenário político, mas a completa e total reversão de todos os princípios autoritários, No campo econômico, a transformação deve ficar nas mãos das massas industriais: estas podem escolher entre um Estado Industrial e o anarco-sindicalismo. Se a escolha recair sobre o primeiro, a ameaça ao desenvolvimento construtivo da nova estrutura social será tão grande quanto aquela representada pelo Estado Político. O Estado Industrial acabaria por se transformar num peso morto, impedindo o aparecimento de outras formas de vida. Por esta mesma razão, o sindicalismo (ou industrialismo) por si só não é, como alegam seus representantes, suficiente. Apenas quando o espírito do livre-arbítrio se integrar às organizações econômicas dos trabalhadores é que as ilimitadas energias criativas do povo conseguirão se manifestar e a revolução poderá ser salvaguardada e defendida. Só a livre iniciativa e a Participação popular nos assuntos da revolução poderão evitar que se repitam os terríveis erros cometidos na Rússia. As reservas de combustível de Petersburgo, por exemplo: como elas ficam a apenas cem verstas de Petrogrado, a cidade não teria porque passar frio desde que a organização econômica dos operários que lá vivem tivesse liberdade para exercer a livre iniciativa em prol do bem comum. Se tivessem acesso aos instrumentos agrícolas empilhados nos depósitos de Kraviá e outros centros industriais aguardando ordens de Moscou para que pudessem ser distribuídos, os camponeses da Ucrânia não teriam sido impedidos de cultivar a terra que lhes pertencia. Esses são exemplos característicos da centralização do governo bolchevique que deveriam servir de advertência aos trabalhadores da Europa e da América quanto aos efeitos destruidores do Poder do Estado.

O Poder industrial das massas, expresso através de suas associações libertárias socialismo anárquico - é o único capaz de organizar com sucesso a vida econômica e levar adiante a produção, por outro lado, as cooperativas, trabalhando em harmonia com as organizações industriais, servem como um meio de distribuição e troca entre a cidade e o campo e, ao mesmo tempo, ligam por laços fraternais as massas industriais e agrícolas. Cria-se um laço comum de serviço e auxílio que se constitui no mais forte sustentáculo da revolução - muito mais eficaz do que o trabalho obrigatório, o Exército Vermelho ou o terrorismo. Só assim a revolução poderá agir como um fermento, apressando o desenvolvimento de novas formas sociais e inspirar as massas para que busquem maiores realizações.

Mas as organizações industriais partidárias do livre-arbítrio e as cooperativas não são o único meio de ação recíproca das complexas fases da vida social. Há também as forças culturais que, embora mantenham estreitos vínculos com as atividades econômicas, têm ainda funções próprias a desempenhar. Na Rússia, isso se tornou quase impossível desde o início da Revolução de Outubro pela violenta separação entre a intelligentsia e as massas. É verdade que no caso da Rússia, quem primeiro errou foi a classe intelectual que - tal como acontece em outros países - agarrou-se tenazmente aos fraques da burguesia. Esses elementos, incapazes de compreender o significado dos atos revolucionários, tentavam deter a maré com a sabotagem em grande escala. Mas havia na Rússia um outro tipo de intelligentsia que tinha atrás de si cem anos de glorioso passado revolucionário e que, embora não pudesse aceitar sem reservas a nova ditadura, mantinha a fé no povo. O erro fatal dos bolcheviques foi que não fizeram distinção entre esses dois tipos de intelligentsia: enfrentaram a sabotagem com o terror indiscriminado contra a classe intelectual como um todo, inaugurando uma campanha de ódio mais intensa do que a perseguição movida à burguesia. Isso fez com que se abrisse um abismo entre os intelectuais e o proletariado e criou uma barreira ao trabalho produtivo.

Lênin foi o primeiro a perceber esse erro criminoso. Ele observou que era um grave erro fazer com que os operários acreditassem que poderiam criar indústrias e ocupar-se com atividades culturais sem a cooperação da classe intelectual. O Proletariado não tinha nem conhecimento nem o preparo necessários para a tarefa e, assim, foi preciso reintegrar os intelectuais à direção da vida industrial. Mas o reconhecimento de um erro não impediu que Lênin e seu partido imediatamente cometessem outro. Os técnicos de nível superior foram chamados de volta em termos que acrescentaram a desintegração ao antagonismo contra o regime. Enquanto os operários continuavam morrendo de fome, os engenheiros e técnicos recebiam altos salários, privilégios especiais e as melhores rações. Eles logo se tornaram os funcionários mimados do Estado e os novos feitores das massas. Estes, alimentados durante anos pelos falaciosos ensinamentos de que para fazer uma revolução bem sucedida são necessários apenas músculos e que só o trabalho físico é Produtivo e influenciados pela campanha de ódio que classificava cada intelectual como um contra-revolucionário e um especulador, não podiam aceitar aqueles aos quais tinham sido ensinados a odiar, desconfiar e escarnecer.

Infelizmente a Rússia, não é o único país onde essa atitude da classe proletária contra os intelectuais predomina. Em toda a parte, os políticos demagogos jogam com a ignorância das massas, ensinando-lhes que educação e cultura são preconceitos burgueses, que os trabalhadores podem passar sem eles e que só os operários são capazes de reconstruir a sociedade.

A Revolução Russa tornou muito claro que tanto músculos quanto cérebros são indispensáveis para a tarefa de reconstrução social. Há uma interdependência tão grande entre o trabalho intelectual e físico no organismo social quanto entre o cérebro e a mão no organismo humano. Um não pode funcionar sem-o outro...

Nas Páginas anteriores, tentei demonstrar porque os princípios, métodos e táticas bolcheviques fracassaram e porque princípios e métodos semelhantes, aplicados em outros países, mesmo em países altamente desenvolvidos, também devem fracassar.
Mostrei ainda que não foi apenas o bolchevismo que fracassou, mas o próprio Marxismo. A experiência da Revolução Russa provou que o CONCEITO DE ESTADO e o princípio da Autoridade estavam falidos. Se tivesse de resumir meu ponto de vista numa só frase, eu diria que a tendência do Estado é concentrar, limitar e monopolizar todas as atividades sociais; a natureza da Revolução é, ao contrário, crescer, alargar, espalhar-se em círculos cada vez maiores. Em outras palavras, o Estado é institucional e estático; a revolução é fluente, dinâmica. Essas duas tendências são incompatíveis e mutuamente destrutivas. O conceito de Estado acabou com a Revolução Russa e deve ter provocado os mesmos resultados em todas as outras revoluções, a menos que o espírito libertário prevaleça.

Entretanto, é preciso que eu vá além. Não apenas o Bolchevismo, o Marxismo e o Governamentalismo são fatais tanto à revolução quanto a todo o Progresso humano. A verdadeira causa do fracasso da Revolução Russa é bem mais profunda e pode ser encontrada na própria concepção socialista da revolução.

A idéia dominante e quase geral sobre a revolução, especialmente o conceito socialista é a de que a revolução é uma mudança violenta das condições existentes, através da qual uma classe social - a classe operária - passa a dominar outra classe, a classe capitalista. Esse é um conceito de mudança Puramente físico e como tal implica apenas em transformações no cenário político e novas formas institucionais. A ditadura da burguesia é substituída pela ditadura do proletariado - ou pela ditadura de sua guarda avançada, o Partido Comunista; Lênin toma o lugar dos Romanov, o Gabinete Imperial é rebatizado, passando a ser chamado de Soviete dos Comissários do Povo, Trotski é nomeado Ministro da Guerra e um operário torna-se Governador Geral Militar de Moscou. Essa é, em resumo, a tradução na prática da teoria Bolchevique de revolução. E, com algumas pequenas alterações, é também o conceito de revolução de todos os outros partidos socialistas.


Essa concepção é inerente e fatalmente falsa. A revolução é, na verdade, um processo violento. Mas se a única conseqüência fosse uma mudança de ditadura, uma troca de nomes e personalidades políticas, nem valeria a pena fazê-la. Pois certamente esta mudança não mereceria tanta luta e sacrifício, a perda de milhares de vidas humanas e valores culturais, conseqüência inevitável de todas as revoluções. Se uma tal revolução chegasse algum dia a trazer o bem estar social (o que não aconteceu na Rússia), nem assim valeria o preço terrível que se deve pagar por ela: uma simples melhora nas condições existentes pode ser obtida sem que seja necessário fazer uma revolução sangrenta. Os verdadeiros objetivos e propósitos da revolução, tal como eu os vejo, não são meramente paliativos ou superficiais.

Na minha opinião - mil vezes reforçada pela experiência russa - a grande missão da revolução, da REVOLUÇÃO SOCIAL, é uma transposição fundamental de valores. Uma transposição não apenas dos valores sociais mas dos valores humanos, estes até mais importantes, já que são a base de todos os outros. Nossas instituições e as condições em que vivemos estão fundadas em idéias profundamente enraizadas. Mudar essas condições, deixando ao mesmo tempo intactas as idéias e valores subjacentes, significa que houve apenas transformações superficiais que não poderiam ser permanentes nem trariam qualquer melhora real. E que seriam apenas mudanças de forma, não de substância, como ficou tragicamente provado na Rússia.

E o grande fracasso e tragédia da Revolução Russa é que ela tentou mudar (sob a liderança do partido político do governo) não apenas as instituições e as condições de vida, enquanto que, ao mesmo tempo, ignorava totalmente os valores sociais e humanos envolvidos na Revolução. Pior ainda, na sua louca ambição pelo poder, o Estado Comunista procurou até reforçar e aprofundar as próprias formas que a Revolução tinha se proposto a destruir. Apoiou e estimulou as piores características anti-sociais e destruiu de forma sistemática a idéia já despertada dos novos valores revolucionários. O sentido de justiça e igualdade, o amor pela liberdade e pela fraternidade humana - bases da verdadeira regeneração da sociedade -, tudo isso o Estado Comunista sufocou até acabar com eles. O senso instintivo de justiça foi chamado de sentimentalismo; A dignidade e a liberdade humanas transformaram-se numa superstição da burguesia; o sentido do valor sagrado da vida, que é a própria essência da reconstrução social, foi condenado como anti-revolucionário, quase contra-revolucionário. Essa atemorizante perversão de valores fundamentais trazia dentro de si a semente da destruição. Com a idéia de que a Revolução era apenas um meio de obter o poder político, era inevitável que os valores revolucionários ficassem subordinados às necessidades do Estado Socialista; que fossem, na verdade, explorados para aumentar a segurança do recém-adquirido poder governamental. ?Razões de Estado? mascarados de interesses da ?revolução e do povo? tornaram-se o único critério da ação e até mesmo do sentimento. A violência, a trágica inevitabilidade dos levantes revolucionários, tornou-se um costume estabelecido, um hábito que foi finalmente entronizado como a instituição mais poderosa e ideal. Pois não foi o próprio Zinoviev quem canonizou Dzerzhinsky, o líder da sangrenta Tcheca, como ?Santo da Revolução" ? O Estado não dedicou as maiores honrarias públicas a Uritsky, o fundador e sádico chefe da Tcheca de Petrogrado ?

Essa perversão dos valores éticos cedo se cristalizou no lema dominante do Partido Comunista: os fins justificam os meios. Da mesma forma, no passado, a inquisição e os Jesuítas adotaram esse lema e subordinaram a ele toda a moral. E ele se vingou dos jesuítas, da mesma forma como se vingou da Revolução Russa. No rastro deste lema vieram a mentira, a falsidade, a hipocrisia, a traição, o crime às claras ou em segredo. Deveria ser do maior interesse para os estudantes de psicologia social o fato de que dois movimentos tão distantes no tempo e nas idéias quanto o bolchevismo e o jesuitismo atingiram resultados exatamente semelhantes na evolução do princípio de que os fins justificam os meios. Este paralelismo histórico, quase totalmente ignorado até agora, contém uma lição importantíssima, não só para todas as revoluções futuras, como para o futuro da própria humanidade. Não há maior falácia, do que a crença de que objetivos e propósitos são uma coisa e métodos e táticas, outra. Essa concepção é uma poderosa ameaça à regeneração social. Toda a experiência humana ensina que métodos e meios não podem ser separados do objetivo principal. Os meios empregados acabaram por se tornar, através dos hábitos individuais e da prática social, parte e parcela do objetivo final; eles exercem sua influência sobre ele, modificam-no até que objetivos e meios se tornam uma coisa só. Desde o dia da minha chegada na Rússia eu senti isso, a princípio vagamente, depois com clareza cada vez maior. Os grandes e elevados objetivos da Revolução tomaram-se tão enevoados e obscurecidos pelos métodos utilizados pelo poder político para atingi-los, que é difícil distinguir entre os meios temporários e o propósito final.
Psicológica e socialmente, os meios irão necessariamente influenciar e alterar os fins. Toda a história do homem é uma prova contínua da máxima de que retirar os conceitos éticos dos métodos utilizados significa mergulhar nas profundezas da desmoralização total. É aí que reside a verdadeira tragédia da filosofia bolchevique tal como foi aplicada à Revolução Russa. Que essa lição não tenha sido em vão. Nenhuma revolução pode ser bem sucedida como um fator de liberação, a menos que os meios utilizados para incrementá-la sejam autênticos em espírito e tendência aos propósitos a serem atingidos.

A Revolução é a negação de tudo o que existe, um violento protesto contra a desumanidade do homem para com o homem, com as mil formas de escravidão que daí resultam. É o agente que se propõe a destruir os valores dominantes sobre os quais um sistema complexo de injustiça, opressão e maldade foi construído pela ignorância e a brutalidade. É o arauto dos NOVOS VALORES, anunciando uma transformação nas relações básicas dos homens entre si e entre estes e a sociedade. Não é um simples reformador que vem consertar alguns erros sociais, não é um mero transformador de formas e instituições; não é apenas um redistribuidor de bem-estar social. É, em primeiro lugar, o que traz novos valores. E a grande mestra da nova ética, é quem inspira no homem um novo conceito de vida e suas manifestações nas relações sociais. É um regenerador mental e espiritual. Seu primeiro preceito ético é a identidade entre meios utilizados e objetivos propostos. O principal objetivo de todas as mudanças sociais revolucionárias é estabelecer o sagrado valor da vida humana, da dignidade do homem, o direito que todo o ser humano tem à liberdade e ao bem-estar. A menos que estes sejam os objetivos essenciais da revolução, não haveria nada que justificasse as violentas mudanças na sociedade. Pois mudanças sociais de fachada podem ser - e têm sido - obtidas pelos processos normais da evolução. A revolução, ao contrário, significa não apenas mudanças externas, mas transformações internas básicas, fundamentais. Essas transformações de idéias vão penetrando nas camadas sociais cada vez mais simples e culminam finalmente num violento levante conhecido como revolução. Será possível que esse processo possa reverter o processo de transvalorização, voltar-se contra ele, traí-lo? Foi isso o que aconteceu na Rússia. Ao contrário, a própria revolução deve apressar e aprofundar o processo do qual é a expressão cumulativa; sua principal missão é inspirá-la, elevá-la a maiores alturas, dar-lhe um âmbito maior de expressão. Só assim é que a Revolução poderá ser fiel a si mesma.
Aplicada na prática, isso significa que o período de revolução real, o assim chamado estágio transitório deve ser a introdução, o prelúdio de uma nova condição social. É a fronteira para uma NOVA VIDA, A NOVA CASA DO HOMEM E DA HUMANIDADE.

Como tal, deve estar em harmonia com o espírito da nova vida, com a construção do novo edifício. Hoje é o pai de amanhã. O presente projeta a sua sombra no futuro. Esta é a lei da vida, tanto da vida individual quanto social. A revolução que se despoja dos valores éticos lança, por esse meio, as bases da injustiça, da falsidade e da opressão para a sociedade do futuro. Os meios utilizados para preparar o futuro transformam-se na pedra angular deste futuro.

Observe as trágicas condições em que se encontra a Rússia. Os métodos de centralização estatal paralisaram a iniciativa e o esforço individual. A tirania da ditadura acovardou o povo, lançando-o numa submissão servil e extinguiu quase totalmente a chama da liberdade; o terrorismo organizado rebaixou e brutalizou as massas, sufocando todo o idealismo, todo o sentido da dignidade do homem e do valor da vida, que foram finalmente eliminados. A coação a cada passo transformou o esforço numa coisa amarga, o trabalho num castigo, tornou todos os aspectos da vida numa trama de enganos mútuos e reavivou os instintos mais baixos e mais brutais do homem. Uma triste herança para começar a vida de liberdade e fraternidade.

Nunca será demais salientar que a revolução terá sido feita em vão, a menos que seja inspirada por um verdadeiro ideal. Os métodos revolucionários devem estar em harmonia com os fins revolucionários. Os meios utilizados para promover a revolução devem estar em harmonia com seus propósitos. Em resumo, é preciso que os valores éticos que a revolução pretende estabelecer na nova sociedade sejam aplicados desde o início das atividades revolucionárias do assim chamado? período de transição?, pois eles só poderão servir como uma verdadeira e segura ponte para a nova vida se forem construídos com os mesmos materiais da vida que se quer alcançar. A revolução é o espelho dos dias futuros...

GOLDMAN, Emma. O fracasso da revolução russa. In WOODCOCK, George (Org). Os Grandes escritos anarquistas. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 1981. p. 140-149.